patanga

Dezoito anos atrás eu estava me recuperando de um ferimento num dos ossos das pernas e não estava fazendo exercício nenhum, pois acreditava que não conseguiria mais. Eu era um bom rapaz, que não fazia nada de mal, mas também não fazia nada muito significativo ou frutífero. Minha vida era meio vazia. Num daqueles dias, eu fui num curso gratuito de meditação. O palestrante tinha levado uma foto do seu Mestre espiritual, Sri Chinmoy. Em dado momento do curso, parei de prestar atenção no que se falava e comecei a olhar para a foto. Parecia que ela retornava o olhar para mim, um olhar sério – como se aquele Mestre tivesse responsabilidade por mim, como se a minha vida e meu progresso fosse responsabilidade dele também. Foi algo que nunca esqueci.

 

Alguns meses depois, me tornei discípulo dele e também passei a meditar diariamente. Uma das coisas que Sri Chinmoy considera essencial para um buscador espiritual que deseja fazer progresso é o esporte, e deixou exemplo correndo inúmeras maratonas e ultramaratonas. Um dos seus lemas é “Run and become, become and run.” Ele ensina que o esporte é fundamental para termos saúde, purificar nossas emoções e trazer determinação, luminosidade e espontaneidade para o físico e mental. Com isso, a sua prática intrinsecamente espiritual de meditação e oração também se beneficia, pois o instrumento (que é você todo, todas as suas partes do ser) está em boas condições. Lembro que bem no dia que recebi a notícia de que tinha sido aceito, eu fiquei tão inspirado que saí para correr pela primeira vez, já que era a recomendação do Mestre.

 

Passados uns dez anos, tive um caso de dengue muito sério. Não conseguia me recuperar. Todos os dias eu ficava muito fraco, a ponto de querer perder a consciência. Nenhum médico conseguia descobrir o que era. Depois de meses e anos piorando gradualmente, no trabalho (eu era obrigado a ir, por não ter diagnóstico), eu lembro que queria muito desmaiar, para não precisar mais ficar resistindo. Nos dias não tão ruins, eu pensava “Vou tentar viver só mais uma semana.” Nos dias ruins, pensava “Vou tentar viver só mais amanhã.”

 

Em 2013, um médico de ayurveda pegou o meu pulso e viu tudo o que acontecia. Ele recomendou que eu me mantivesse fisicamente ativo durante o dia, por mais difícil que fosse. Eu já tentava correr o quanto eu conseguia de manhã, que era quase nada, mas adicionei pausas no trabalho para subir e descer escadas, etc. Não pareceu adiantar. Até que um dia fiquei sabendo da corrida que o meu Mestre (sim, ele novamente) havia criado em em Nova Iorque, com opção de seis ou de dez dias de duração. (Isso mesmo, você corre por até dez dias dentro de um parque, como se fossem dez corridas de 24h uma em seguida da outra.) Eu pensei, “vou ficar fisicamente ativo bastante tempo se fizer essa corrida!” Eu já não tinha mais nenhuma ideia do que fazer e estava piorando ainda. Eu me inscrevi para a corrida de dez dias. Foi a decisão de investir a minha vida inteira naquele único momento. Se não desse certo e fosse a minha última aventura por aqui, muito bem! – pelo menos eu haveria tentado tudo.

 

Alguns me perguntaram porque eu comecei com a corrida de dez dias, ao invés da de seis. Um dos motivos é que eu havia perdido o medo de tudo. Outro é porque não achava que haveria diferença treinar para correr seis ou dez dias. (O que você faria de diferente se fosse “treinar” (se é que é possível) para correr seis dias e se fosse para treinar para dez dias?)

 

Durante a corrida, as experiências acontecem de hora em hora. Tive muitos problemas biomecânicos – pés, joelhos, costas, canela. Sempre tinha que me adaptar, cortar os tênis para dar espaço para os pés inchados, cuidar de bolhas, etc. Mas o fato é que nem tudo tem conserto. Já no meu segundo dia, depois de uma pausa, pensei “Isto aqui não é para mim. Isto aqui é para atletas, etc. Eu não sou ninguém.” Chega uma hora, onde o cansaço, os ferimentos, a dor, a dúvida de si, tudo isso se junta, e não há algo que você possa fazer para resolver. Só há duas estradas. Desistir, ou continuar.Neste exato momento, você tem que ficar mais forte do que é, ou então desistir.

 

Felizmente, diversas vezes pude cantar com o poeta: “Duas estradas divergiram num bosque, e eu – eu tomei a estrada menos viajada. Isso fez toda a diferença.”

 

São coisas que vêm de dentro de nosso do nosso coração espiritual. Sinto que foi a prática diária de meditação que me deixou aberto para essas experiências. Eu era muito fechado para tudo, minha vida era mecânica; quando comecei a meditar com dezenove anos, minha vida era só o andar dos ponteiros do relógio e o que mais aparecesse no dia a dia da faculdade. Não tinha um propósito maior.

 

Já, na corrida, por mais que pareça impossível, inflamações que me deixariam de cama por dias (e não me deixariam sair para correr cinco minutos) passaram a ser meros inconvenientes, e eu corria três, seis, dez, doze horas em cima delas. Correndo dois ou três dias por cima de um machucado, o seu corpo muda algo na forma de reagir, e o problema passa. Provavelmente um médico me recomendaria semanas de descanso para recuperar. Mas o problema se cura com doze horas de corrida e muito pouco sono! Algumas experiências como a canelite, que foi a mais terrível, fez com que, primeiro sentisse toda a pena de mim. Lembro de sentar-me no meio fio e ficar vários minutos parado, criando coragem para encarar a dor caminhar mais dez metros até a minha barraca para descansar de fato. Depois de um tempo, aceitei a experiência num nível mais alto, enfrentei-a e, para a minha surpresa, a dor imediatamente diminuiu muito.

 

Depois de uns seis dias, minhas pernas estavam ficando mais fortes (sem descanso algum), e comecei a correr mais rápido. Comecei a comer menos. Comecei a dormir menos. Parecia que o corpo estava funcionando com base em outras leis que não vivenciamos no nosso cotidiano de acorda-trabalho-escola-dorme.

 

Desafios exclusivamente psicológicos também acontecem. Num dos dias, acho que esqueceram de contar uma ou duas voltas minhas na pista do parque. Minha mente se revoltou. Mas eu sabia que não estava lá pela quilometragem. Para mim, era algo exclusivamente entre eu e algo maior, um destino aonde precisava chegar. Mas, ainda assim, os pensamentos me mordiam: “Eles esqueceram!” Depois de muitas horas insistindo com a mente, um vai-e-volta constante, dizendo que nada daquilo importava de fato, ela por fim se rendeu. Tive uma experiência incrível! Fiquei livre daquele fardo e estava correndo como uma criança que brincava num parque! Nunca mais tive esse problema!

 

Mais no final da corrida, pelo sétimo dia, tudo era um paraíso. Eu enxergava mais cores nos pássaros. Eu sorria mais sinceramente. Eu me identificava com as pessoas. Eu sentia algo genuíno pelos ajudantes voluntários organizando a corrida. Sorria com sinceridade para eles, para encorajá-los, pois também estavam fazendo algo difícil. O mundo ficou muito maior, mais belo e, ao mesmo tempo, cabia muito mais coisas dentro do meu coração. Essa não foi uma experiência que acabou depois de algumas horas. Ela ficou para sempre dentro de mim.

 

Cada dia nessa corrida parecia uma semana. Acho que é por causa do progresso que fazemos. Aprendemos tantas coisas, temos de nos tornar tão mais fortes de um momento para o outro, que a sensação é a de anos de aprendizado.

 

Alguns dias depois da corrida, comecei a ficar mais forte. As crises de fraqueza começaram a diminuir em intensidade e regularidade. Tive esperança novamente. Depois de um ano, comecei a ficar fraco de novo, mas repeti a corrida nos anos seguintes, com melhoras evidentes. Hoje, quase tudo já passou – o que ficou mais foram as memórias.

 

Até hoje, já fiz essa corrida oito vezes, e ano que vem a farei novamente! Tudo começou naquele dia, no curso de meditação.

 

Se você acredita que correr dez dias é incrível (e estaria certo), já ouviu falar da corrida de 5000km? O tempo limite é 52 dias, mas você precisa fazer quase 100km por dia em média para terminar nesse tempo.

 

 

 

Corrida Sri Chinmoy de 10 dias

um poema em três partes descrevendo a minha experiência na primeira corrida de 10 dias que fiz.

 

Infernos – preâmbulo

 

Vida fraca,

vontade esvai,

corpo fraqueja,

a mente entrega –

é o início do encontramento:

Treino,

barreiras,

provas.

 

Purgatório

 

Dez dias

correndo

sofrendo

doendo

sorrindo

caminhando

continuando

amando.

 

Calçados cortados,

fracasso cortado

tempo cortado

morte cortada

 

Campos Elíseos

 

Sétimo dia.

O céu, o lago, flores de grama

os campos elíseos.

Penas do pássaro negro

mostrando cores arco-íris.

Se é sonho

ou realidade,

o sonho-realidade é mais real

juntando duas realidades

num sonho só.

 

Dez dias.

Gratidão,

coragem

e fé.